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Um pouco de história: A fábrica ao lado

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Um pouco de história: A fábrica ao lado
Foto: Fernando Vivas | Ag. A TARDE

Vestido com uma capa de chuva amarela, Miguel, 64, surge entre os escombros. É o ponto incandescente na cena cinza. "Vê aquela torre?", ele pergunta. "Tem ventilação e vista boa. Durmo lá". O morador de rua, de rosto radioso, destilando confiança em si mesmo, descortina seu crachá: "Sou o guardião aqui". O espaço guardado é um monstro de ferro, aço e concreto, posicionado tal qual um farol que se abre para a praia de Paripe, no subúrbio de Salvador; um derradeiro exemplar do que foi o primeiro grande sítio industrial do país.


Miguel chegou à velha fábrica de cimento no início dos 1990, quando trabalhadores, motores e barulhos já haviam cessado. Décadas antes, entre o final do século 19 e meados do século 20, 127 fábricas à semelhança daquela se instalaram na Península de Itapagipe e no subúrbio ferroviário, regiões então idílicas da capital. Com a mesma rapidez moderna e movidas por ofertas fiscais mais atraentes, elas partiram para outras regiões do Brasil, legando um horizonte pontilhado por construções em decadência nesta área de Salvador.


Os vestígios do que outrora foi o oásis da atividade industrial nacional descansam no que hoje são bairros com comércios populares, puxadinhos e ruas apertadas; servem de campo para o futebol, para os furtos, para o grafite e para o abrigo dos sem-teto. Os esqueletos das antigas fábricas não têm o charme das ruínas gregas. O concreto não descasca, escurece. O vidro temperado não suja, enlameia. Mas há algo que alude à ruína romântica: a retomada impetuosa da natureza, da vegetação que vai envolvendo frestas e juntas de dilatação e ajardinando chaminés, tanques, engrenagens.


"Em cada uma dessas fábricas deve ter um grupo morando. Aqui, sou só", diz Miguel, ostentoso de não sofrer concorrência de outros moradores pelo espaço. Com a pose de bandeirante que lhe convém, ele aponta para o litoral que alinha os bairros do subúrbio e da Cidade Baixa de Salvador: "Tem restos de fábricas de tecido, de fumo, cera, sapato, algodão, cal, fósforo. Fábrica de papelão, prego, móvel, vidro, borracha, bombom. Mal, a gente não passa".


Marco Zero


Às margens da Avenida Suburbana, no bairro de Plataforma, encontra-se aquele que talvez seja o mais conhecido entre os restos industriais, marco zero da região, o conjunto arquitetônico da fábrica de tecidos São Braz - ao redor dela, surgiram ruas, vilas operárias e armazéns. Com seus tijolos alaranjados aparentes, essa é a ruína que lembra o momento em que o Brasil almejou com força a modernidade industrial  - se tudo é feito pela indústria, tudo deveria ser feito para ela.


"Nossa produção enchia os vagões dos trens da Leste (Viação Férrea Federal do Leste Brasileiro), e as barcaças que saíam da Península Itapagipana, desembocavam na Baía de Todos-os-Santos e iam em direção a todo o país", diz o senhor de fala rápida, Eduardo Barajas, 87, sentado na laje de seu sobrado, com vista privilegiada para a antiga São Braz. "Eu operava as caldeiras a vapor; ficava apaixonado pelos relógios gigantes dos corredores e pela alvura dos linhos. Eram os anos 1940 e eu era jovem. Você pode dar um desconto ao encanto".


Eduardo pertence à segunda geração dos trabalhadores fabris de Plataforma, geralmente filhos daqueles que inauguraram, no final do século 19, o trabalho em São Braz. Para a primeira geração, havia um ícone chamado Luiz Tarquínio (1844-1901), o barão de Mauá baiano e proprietário da fábrica, dado a relações trabalhistas amigáveis e, por isso, visionárias. Para a segunda geração e todas as descendentes, no entanto, estabeleceu-se uma relação divergente com a tradicional família Martins Catharino, que, após a morte de Tarquínio, adquiriu não apenas a fábrica, mas também os terrenos arrendados pelo industrial aos seus funcionários.


"Muitos  continuam  inquilinos dos Martins Catharino. E pagam por isso", diz Sandra Costa, 30, presidente da Associação de Moradores de Plataforma (Ampla). Com o aumento constante no preço dos aluguéis, a associação entrou, há 15 anos, com ação judicial coletiva reivindicando o direito à propriedade (usucapião).


"Alguns moradores, desinformados, acabaram assinando novos contratos de aluguel. Como não podem pagar, estão sendo despejados. Ano após ano, famílias precisam deixar Plataforma", conta Sandra, que, hoje, corre o bairro atualizando os moradores sobre as novidades do processo, ainda sem previsão de um veredito. Procurados, os membros da família negaram-se a entrar em detalhes sobre o assunto, adotando o mesmo silêncio que agora preenche os destroços de São Braz.

Informações A Tarde